sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Direito à cidadania só é possível com igualdade econômica

por José Barroso Filho

Na vida, não existem soluções. Existem forças em marcha: é preciso criá-las e, então, a elas seguem-se as soluções. Antoine de Saint — Exupéry

Ao homem, de exclusivo, só sua essência, sua alma, tudo mais a que ele se agrega pode ou não lhe pertencer, de acordo com o ideal político que conforma o sistema jurídico. Percebe-se que existem duas grandes manifestações a determinar a condução da sociedade, quais sejam: o poder político e o poder econômico.

As grandes mudanças de regime político foram determinadas por razões econômicas, cujas bases políticas de sustentação eram lançadas por ideólogos de forma a legitimar o sistema. Assim caminha e caminhará a Humanidade: O Poder Político a serviço do Poder Econômico.

Economicamente é preciso demonstrar que um "novo mundo é possível", do contrário, as teorias não sairão do papel. Para Adam Smith, as vontades individuais levariam a vantagens da coletividade, ou seja, a soma do utilitarismo (maximização do prazer, felicidade) individual gera o utilitarismo coletivo. Porém, vale um exemplo: Quando todos os indivíduos optam pelo carro ao invés de um transporte coletivo, resulta em uma grande dificuldade de mobilidade urbana.

Nestes casos em que os indivíduos, egoisticamente estimulados a aumentar ao máximo a sua própria vantagem e percebendo a assimetria das informações, tendem a não cooperar alcançado, assim, resultados inferiores aos possíveis se tivessem cooperados.

Assim, o próprio Adam Smith reconhece que o valor do egoísmo tenha de ser condicionado pela efetiva obtenção de ganhos para a sociedade como um todo. Não condicionado, o egoísmo será moralmente censurável, precisamente porque prejudicial ao interesse da sociedade como um todo.

O mercado funcionaria como uma "mão invisível" que se encarregaria de otimizar a distribuição dos recursos. Conforme Adam Smith o máximo nível de bem-estar social emerge quando cada indivíduo persegue egoisticamente o seu bem-estar individual.

Ocorre que o mercado pode acabar produzindo um resultado que nenhum dos agentes econômicos pretendia. Porém, o centro da questão não é diminuir ou aumentar o papel do Estado, mas de torná-lo mais socialmente mais eficiente. O capitalismo pode ser associado ao princípio da Liberdade e o Socialismo ao princípio da Igualdade.

Levemos em consideração as palavras de John Rawls que enuncia os princípios de justiça que devem ser observados para a construção de uma sociedade justa:

1. Toda pessoa tem direito igual ao conjunto mais extenso de liberdades fundamentais que seja compatível com a atribuição a todos desse mesmo conjunto de liberdades (princípio de igual liberdade).

2. As desigualdades de vantagens socioeconômicas só se

(a) justificam se contribuem para melhorar a sorte dos membros menos favorecidos da sociedade (princípio da diferença) e se

(b) são ligadas a posições que todos têm oportunidades eqüitativas de ocupar (princípio da igualdade de oportunidade).

Neste sentido, é necessário que seja construído um sistema que observe o princípio da Fraternidade para que possamos encontrar o "equilíbrio" preconizado por John Nash — Prêmio Nobel de Economia (1994). O "equilíbrio de Nash" afirma que o bem-estar social é maximizado quando cada indivíduo persegue o seu bem-estar, sob a consideração do bem-estar dos demais agentes que consigo interajam.

Tal teoria vai mais além do que o indicado por Smith. Onde Smith considera apenas o interesse individual, Nash pensa também, e como condição para aquele, o interesse dos outros. Smith pensa a promoção do bem-estar individual como uma preocupação exclusiva pelo interesse próprio de cada um, de que emerge, pelo efeito da "mão invisível", o bem-estar comum.

Nash pensa a mesma promoção do interesse individual como uma preocupação inclusiva pelo interesse dos outros. Nesta visão inclusiva, destaca-se que a pobreza é um fator limitador da liberdade e uma negação à igualdade. Fala-se de um mínimo de dignidade para o exercício da cidadania.

Nas palavras do professor Aziz Nacib Ab’Sáber (USP): "Ninguém escolhe o local geográfico, nem o ventre para nascer, nem as condições socioeconômicas da família, cada pessoa nasce onde o acaso determina".

No entanto, nas palavras do professor Celso Furtado: "Pobreza não é uma fatalidade". São Paulo recomendou, na Segunda Epístola aos Coríntios, que todos seguissem o exemplo de Jesus, que resolveu se solidarizar e viver entre os mais pobres, de tal maneira que todo aquele que tenha uma safra abundante não tenha demais; e todo aquele que tenha uma safra pequena não tenha de menos.

Certo é que a economia só se desenvolverá com a preservação da confiança no recebimento futuro, no crédito. Se só se vender mediante o imediato pagamento, chegará o momento que faltará quem possa comprar. Daí ser fundamental a instituição do crédito. Do contrário, não haverá financiamento da safra, pois o pagamento do financiamento só ocorrerá com os recursos advindos da safra colhida.

Trabalhemos com dois instrumentos fundamentais e complementares para a superação da pobreza, para a efetivação do princípio da dignidade humana e para o desenvolvimento de um país: o microcrédito e a renda básica de cidadania.

Microcrédito

O Poder Público deve desenvolver um sistema de financiamento e promoção de microcrédito, o investimento (por exemplo: subsídios) e a poupança para potencializar a produção, a transformação e a comercialização da agricultura.

Nos dois primeiros ciclos, se promove a inclusão favorecendo os microprodutores, mediante a poupança, o subsidio e o incentivo (créditos com obrigação de pagamento, mas, sem juros). O sistema promove a poupança e o aumento de capital, diminuindo os subsídios. Em uma última fase, é atingida a autonomia do crédito (cobrando-se juros), possibilitando a inclusão de novos beneficiários.

A duração dos ciclos é variável, dependendo do processo de acumulação de capital. As pessoas com mais condições de pagamento financiam, através dos juros (que constituem o fundo de subsídios e incentivos), para aqueles que não estão em condições de pagar o serviço creditício.

O conceito do microcrédito ganhou destaque mundial com a concessão do Prêmio Nobel da Paz ao pioneiro Muhammad Yunus, de Bangladesh, criador do Grameen Bank ("banco da aldeia"). São operações em que o capital social vale tanto ou até mais que o próprio capital financeiro.

É necessário que as garantias, juros, montantes e prazos previstos permitam pleno acesso ao capital e sejam compatíveis com as características técnico-produtivas da agricultura familiar. O sistema de crédito deve oferecer taxas de juros subsidiados ou assistidos com um tratamento especial para assegurar sua sustentabilidade financeira.

É necessário ousar, desta forma, ao invés de exigir garantias reais, existem alternativas que permitem cobrir o risco, por exemplo, a concessão de créditos grupais com garantia solidária. Na mesma linha de eficiência social, o pagamento pode ser efetuado mediante a entrega dos produtos obtidos e/ou trabalhos solidários para uma instituição pública (creches, refeitórios escolares e hospitais).

O microcrédito é apenas um elemento dentro de uma estratégia de desenvolvimento integral. Para minimizar o risco do investimento, deve-se assegurar o fluxo da renda através da diversificação da produção (ex. cultivos de ciclo curto e longo ou de valor alto e baixo), assim como o apoio a processos de agregação de valor e o desenvolvimento de estratégias de comercialização.

Com isso, incentiva a produção e facilita a comercialização dos produtos, fazendo a renda circular na própria comunidade e promovendo seu crescimento econômico, uma estratégia que objetiva criar um círculo virtuoso.

Fundamental é o desenvolvimento da organização social, com o incentivo e apoio aos produtores a se organizarem em associações e cooperativas como forma de melhorar a auto-sustentabilidade dos programas.

Renda Básica de Cidadania

Os estudiosos em transferência de renda têm apontado que as formas de crédito fiscal e de imposto de renda negativo tornam as economias que as adotam muito mais competitivas e geradoras de oportunidades de emprego. E eles concluem que a forma mais racional é justamente a renda básica de cidadania.

Em 1966, John Kenneth Galbraith afirmou: "Não há cura para a pobreza, mas não deveríamos, em nossa sofisticação, ter receio do óbvio [...] Precisamos considerar uma solução pronta e efetiva para a pobreza, que é proporcionar a todos uma renda mínima. Os argumentos contra essa proposta são numerosos, mas a maior parte deles consiste em desculpas para não pensar em uma solução, mesmo uma que é excepcionalmente plausível".

Em dezembro de 2003, o Congresso Nacional aprovou o projeto do Senador Eduardo Suplicy (PT-SP) que institui a Renda Básica e Cidadania e que, após a sanção do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fez surgir a Lei 10.835, de 08 de janeiro de 2004.

O Programa Bolsa Família (reunião otimizada dos programas sociais: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás — criados no Governo Fernando Henrique e Cartão Alimentação — criado pelo Governo Lula em março de 2003) é o início da Renda Básica de Cidadania.

O "Bolsa Família", maior programa de transferência de renda com condicionalidades já criado tem como objetivos: assegurar às famílias o direito à alimentação, oferecer as condições para cumprimento das condicionalidades, prevenir o processo de desconstituição das famílias e preservar vínculos, além de ser um importante instrumento de combate à pobreza e de fortalecimento das economias locais.

Ao tempo que exige contrapartidas para o recebimento do benefício: manter as crianças na escola e observar o calendário de vacinação dos filhos e de consultas das gestantes e das lactantes.

O programa Bolsa Família, segundo o ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias: "Se apresenta de maneira clara e objetiva, como política emancipadora, ao mesmo tempo em que assegura, em caráter imediato, direitos mínimos a quem antes não tinha nada".

Segue: "O desenvolvimento só será alcançado a partir da integração de todas as suas dimensões. Envolve estratégias que articulem - respeitando as demandas regionais e de cada segmento da população - políticas de educação, saúde, reforma agrária, moradia, transporte coletivo, geração de trabalho e renda, economia solidária, assistência social, segurança alimentar e nutricional, transferência de renda, apoio à agricultura familiar, saneamento, cultura".

Há que se construir um equilíbrio sócio-sustentável, no qual segundo Nash todos possam sair ganhando, sobretudo, na construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Nas palavras do ministro Ubiratan Aguiar — no seu discurso de posse como Presidente do Tribunal de Contas da União em 10 de dezembro de 2008: "Serei ferrenho defensor da construção de pontes institucionais. Solitários, somos todos pequenos e impotentes. Solidários, multiplicamos nossas ações e adquirimos condições de exponencializar resultados".

Sejamos todos artífices destas "pontes institucionais". O ministro Secretaria de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger conclama a que demos "olhos e asas à imaginação institucional".

Nas palavras do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal. "Superando os condicionamentos que lhe encurtavam a visão - sem que tivesse consciência dessa limitação -, aquele que descortina novos horizontes capacita-se a ver mais e melhor, tanto no plano físico quanto no plano espiritual".

E essa superação, essa liberdade — segundo Mangabeira Unger — não será conquistada se "continuarmos a professar uma ciência da sociedade que reduz o possível ao real". Sem dúvida, um novo mundo é possível!

Revista Consultor Jurídico, 30 de dezembro de 2008

Sobre o autor

José Barroso Filho: é juiz-auditor da Justiça Militar Federal, titular da 12ª C.J.M. (AM, AC, RO e RR), juiz internacional da ONU no Timor Leste e professor universitário. Foi juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (mar a jun/2008), juiz de Direito e Eleitoral e promotor de Justiça.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito lúcido e realista!

Anônimo disse...

Li suas considerações sobre o direito à esperança e à fraternidade. Gostei da abordagem porque não se prende um subjetivismo poético, mas aponta para soluções concretas para superar a miséria. Parabéns.