sexta-feira, 4 de junho de 2010

As vergonhas da fome

"A fome de um único homem/no mundo/é a minha fome." Os versos do a cada dia mais esquecido poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, me vêm à lembrança, ao saber, na semana, da uma estatística estarrecedora. Segundo a ONU, 1 bilhão é o número - aproximado - , de famintos a habitar a Terra, até o final deste 2009.

Como diz Anna Karina, em "Pierrot, le fou", de Godard, (né mesmo, Almir Feijó?), ao ouvir no rádio do velho Peugeot, o número de vietcongs mortos na guerra do Vietnam: "Um absurdo que isso seja uma estatística!". E ficam sendo, leitor, só isso: abstrações, frios números que nada falam da tragédia, individualizada, de uma pessoa.
Acho que os humanos de boa vontade não suportaríamos sequer imaginar o que há por trás de cada um dos anunciados 1 bilhão de seres; muitos, neste momento, a comerem as próprias fezes.
Ou como naquela foto histórica, acho que da Etiópia faminta, em que os urubus rondam a criança que agoniza, esquálida, num chão de lama. Sinto vergonha de mim, sinto vergonha de nós, frente àquele registro que é mais do que um soco na cara!
Não precisa ir longe: numa de minhas viagens ao Mato Grosso do Sul, num roteiro de conferências, vi, à margem de muitas estradas, índios guaranis a estenderem os braços esquálidos e as mãos enrugadas, pedindo em sua língua engrolada, um pedaço de pão. Ou um gole cachaça - para anestesiar a fome, a angústia, a desgraça. Maltrapilhos e alcoólatras, molambos, os guaranis.
Antes de nós, sabemos, imponentes guerreiros, caçadores de estirpe...
No Nordeste brasileiro dizem que a coisa é pior, com ou sem Bolsa Família. E isso, repito, leitor, mais do que indignação, a mim me provoca vergonha, a suja vergonha de atirar ao lixo pão amanhecido ou os restos do jantar de ontem. Não, não é a consciência culposa de um burguês enfastiado. Migrante do norte pioneiro, filho de lavradores, por pouco, ao menos o escriba que vos fala, não chegou a engrossar essas ou outras hórridas estatísticas.
Talvez um golpe de sorte tenha livrado a mim e à minha família de não formar junto à legião de famintos aqui mesmo no País insolúvel. E daí que o escândalo, da recém-divulgada estatística da ONU, me envergonhe, além, claro, da natural indignação que provoca mesmo no mais insensível dos mortais.
Há um outro poema que talvez explique tudo, melhor do que Brecht ou as estatísticas.
É de um poeta salvado da fome, o nigeriano Uzodinma Iweala, 27 anos, autor de um romance notável - Feras de Lugar Nenhum. Eu o conheci na Flip-2006. Anotei num velho caderno, o que me ditou, e traduzo livremente do inglês: "Ao surdo ronco do estômago/ a minha fome/ mais do que de alimento/é fome de amor".

Precisa dizer mais?

Wilson Bueno (19/07/2009) O Estado do Paraná.

Paixão

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Matéria, antimatéria e existência!


A ciência abre janelas para a realidade, mas nenhuma permite ver o que estaria além dessa realidade


NA SEMANA passada, manchetes traziam novas do Fermilab, o enorme acelerador de partículas situado nas vizinhanças de Chicago, nos EUA: "Nova pista para explicar nossa existência", escreveu Dennis Overbye, do "New York Times".

Interessante, esse título. Vários leitores escreveram reclamando da aparente necessidade de misturar ciência e religião até mesmo quando se trata de um experimento da física de partículas. Overbye cita Joe Lykken, um excelente físico teórico do Fermilab: "O anúncio não é equivalente a ver a face de Deus, mas os dedos do pé de Deus".

Lykken estava zombando de George Smoot, o prêmio Nobel que, ao revelar os resultados das investigações de sua equipe sobre as propriedades da radiação cósmica de fundo, produzida quando surgiram os primeiros átomos, afirmou que era como "ver a face de Deus".

Será que a existência de matéria e de antimatéria tem algo a ver com Deus? E, se não tiver, por que essa mania de invocar Deus quando se fala de cosmologia?

Smoot não é o único. O também vencedor do Nobel Leon Lederman escreveu um livro com Dick Teresi chamado "A Partícula de Deus".

Stephen Hawking, no seu "Uma História do Tempo", afirma que encontrar uma teoria final é como "conhecer a mente de Deus". Essas afirmações nos dizem não só algo sobre a expectativa do público, mas também sobre o papel cultural que físicos, especialmente aqueles trabalhando em questões ligadas a "origens", exercem. Sou tão culpado quanto eles, já que minha pesquisa trata de origens. Será que a física é a nova teologia?

De jeito algum. Confundir a prática da ciência com a religião é um erro grave. Por outro lado, a física moderna trata de assuntos que, por milênios, eram província exclusiva da religião. A cosmologia tenta construir uma narrativa que nos conta a história do cosmo. Esta história deve começar assim que o conceito de tempo passa a fazer sentido.

Portanto, a cosmologia não quer apenas explicar por que o Universo é do jeito que é, mas por que o Universo é. Se tivermos sucesso, entraremos numa nova era da história das ideias: ao ser capaz de explicar a Criação, a razão humana seria equacionada com... sim, a mente de Deus! Vemos que não é tão surpreendente assim encontrarmos essa metáfora nos textos científicos.

Ela revela ao menos parte das ambições do empreendimento cosmológico. Revela também, como argumentei em "Criação Imperfeita", a necessidade de exorcizarmos essa metáfora da ciência. Ela não só confunde as pessoas como está errada.

A questão do excesso de matéria em relação à antimatéria é essencial. Caso as duas existissem em pé de igualdade, não estaríamos aqui: quando matéria e antimatéria colidem, desfazem-se em radiação.

Portanto, o resultado do Fermilab, que reforça resultados antigos, mostra que a versão atual da física das partículas é incompleta. Por outro lado, a descoberta não tem nada a ver com os dedões de Deus ou outra parte da anatomia divina.

Ela é um triunfo da inventividade humana, irrelevante para a teologia. A ciência certamente abre muitas janelas para a realidade. Mas nenhuma delas nos permite vislumbrar o que ocorre além da realidade.