Leio que vão fazer um filme sobre o “Roberto”. Pô — imagina o meu lado narciso, apoiado por sua dimensão cretina (que faz todo mundo dizer e fazer merda) — finalmente minha vida como herói das salas de aula e dos livros escritos pelas madrugadas; das viagens pelos sertões e pesquisas nas aldeias indígenas; como interprete do Brasil pelo carnaval, pela malandragem e pelo futebol, será reconhecida! Fantasia, é claro! Quem você penso que é, diz, trazendo-me ao chão, você, leitor dessas bem traçadas? A cinebiografia programada será de um “Roberto”, sem dúvida, mas do Carlos. Este, sim, merecedor de ter sua vida ampliada em tela gigante a ser vista com música de fundo e no escuro que conduz à concentração e ao choro escondido e arrebatado. O que esse surto narcisista do cronista tem a ver com o assunto do momento (do momento? tá brincando...): o caso concreto e filmado de, entretanto, uma “alegada”, “suspeita”, “suposta”, “hipotética” e “mentirosa” “corrupção”, cometida por José Roberto Arruda, governador de Brasília e seus comparsas? Pois até agora, como remarcou o presidente Lula, que, para beneficio do bom senso, mudou de ideia, só temos imagens e elas não dizem muito mais — sobretudo depois de enlouquecer de tanto vê-las — do que um milhão de palavras! O que tem esse caso pseudopolicial de corrupção com minha fantasia narcisista de ser cinebiografado tendo, quem sabe, Sean Connery — p.q.p! — fazendo o meu papel? Tem tudo, caros leitores! A raiz disso que chamamos de “corrupção” ou “roubalheira” faz parte da dinâmica dessa sociedade de viés aristocrático, escravocrata e capitalista que, reduzindo a política a uma formalidade e situando tudo no estado, adotou o sistema republicano. Nela, há mais dificuldade em ter cidadãos iguais perante a lei do produzir em série que chamei — faz 30 anos, no livro, “Carnavais, malandros e heróis” — “superpessoas”. Essas figuras que resultam da combinação do viés hierárquico e carismático (que marcam a nobreza) com a burocracia estatal de corte igualitário, desenhada para dela diferenciar-se e proteger-se e que acaba por ser sócia do sistema e por isso inventa o “sabe com quem está falando?” em todas as situações em que se vê ameaçada pela igualdade que recusa seguir. A superpessoa ou o sujeito com biografia, situado acima das leis, é rotineiramente fabricado neste sistema governado por leis universais e igualitárias mas que, na prática ou na “realidade”, são aplicadas com toneladas de sal (para parafrasear Weber) e pimenta (digo eu) somente para os subordinados. Nesse Brasil, a discussão política passa por tudo, menos pelo poder dos governantes que passam a ser os donos (como acentuou Faoro) de um sistema centralizado cujo caráter é, paradoxalmente, universal, mas que opera de modo particularista, perguntando menos sobre o que e como foi feito, e muito mais pelo quem fez. Quando se chega nesse nível, você vira filho do Brasil! Uma vez por dentro do estado (que governa tudo) e transformados em “superpessoas”, os administradores públicos deixam de ser guardas das leis e dos constrangimentos morais impostos pelos cargos, e viram seus senhores ou “políticos”. Fazem como seus sócios das empresas privadas que contratam, com a diferença que essas empresas têm dono, enquanto os nossos corruptos deveriam ser escudeiros dos cargos que ocupam temporariamente. Se aqueles burlam o mercado e a competição, estes saqueiam o povo em nome do qual foram eleitos. O resultado é que a lei só vale para baixo e para o lado, sobretudo para quem está do “outro lado”. Os mensalões provam que a questão não está na “direita”, como pensávamos antigamente; mas no “centro” e também na “esquerda” lacerdista, como o governo Lula teve a honra de demonstrar. Mais: ocorre em todos os níveis politico-administrativos. No federal (caso do PT), estadual (caso do PSDB) e municipal (caso dos DEM). Isso prova como a ideologia se esvai diante desse estilo de governo que transforma o eleito em nome do povo num rei. Numa superpessoa. Uma entidade que, como dizia Darcy Ribeiro: não nasceu, foi fundado (caso dele, aliás...). E, assim, biografado, bajulado e cinebiografado; atinge um “Nirvana social” — essa forma brasileira de onipotência. Entra na aristocracia dos que podem confundir igualdade e hierarquia e usar as instituições que administram — salvo as exceções que confirmam a regra sem nenhuma noção de limite, culpa ou vergonha. Os verdadeiros filhos do Brasil, leitores, são a elite, não o povo. Esse sempre foi o filho da puta do país! Aliás, a ética do sistema escancara: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei!”, o que a um só tempo demonstra a nossa aversão a igualdade que deveria estar no centro de um sistema liberal até hoje claudicante, e a subordinação de um valor às redes de relações pessoais, responsáveis por essa rotineira cadeia de saques dos dinheiros públicos. Os filmes dos pilantras eleitos e dos seus asseclas, dando e recebendo dinheiro vivo, sendo envergonhadamente escondido (afinal até bandidos têm noção do imoral) na meia e na cueca (se pudessem enfiavam o dinheiro no próprio corpo), nesses mensalões, serve ao menos para revelar essa dolorosa e triste verdade! (Continua, se não houver coisa mais deprimente, na próxima semana).
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