Marcelo Gleiser
A visão que temos hoje do cosmo se deve a dois homens que, há 400 anos, acreditaram nas próprias ideias
Começou a grande festa dos céus. 2009 é o Ano Internacional da Astronomia. Por todo o mundo, centenas de conferências, palestras, livros e documentários irão celebrar a ciência dos céus. No Brasil, entre várias celebrações, telescópios serão distribuídos em escolas.
Por que 2009? Em 1609, dois eventos marcaram o início de uma nova era: o italiano Galileu Galilei apontou o seu telescópio para os céus, mudando definitivamente a nossa concepção dos astros e, mais importante, o nosso lugar no cosmo. No mesmo ano, o astrônomo alemão Johannes Kepler publicou o seu "Astronomia Nova", que, como já diz o título, propôs uma nova astronomia, baseada na descrição das causas por trás dos movimentos celestes: planetas giram em torno do Sol devido a uma força e não por estarem presos a esferas de cristal. Na mesma obra, Kepler mostra que as órbitas planetárias, por milênios descritas como sendo circulares, são, na verdade, elípticas. Tanto na obra de Galileu quanto na de Kepler, são os dados e as observações cuidadosas que determinam a nova ciência dos céus. Galileu não inventou o telescópio. A descoberta é atribuída a um holandês, em 1608. O que Galileu fez foi aperfeiçoar o instrumento, aumentando a sua potência. A sua grande sacada foi usar o instrumento para estudar o céu noturno, com o intuito de criticar a filosofia de Aristóteles e seus seguidores. Para o grego, os astros eram feitos de uma substância eterna e perfeita, o éter ou quintessência. Nos céus, ao contrário do que ocorria da Lua para baixo, nada mudava. A Terra ocupava o centro do cosmo, imóvel. O que Galileu viu contrariava isso tudo. A Lua era coberta de crateras e montanhas, longe de ser uma esfera perfeita. Saturno tinha "orelhas", e Júpiter, quatro satélites. Imagino a emoção que Galileu deve ter sentido ao ver pela primeira vez na história as quatro maiores luas de Júpiter. A descoberta foi devastadora para o modelo geocêntrico de Aristóteles: se Júpiter, um planeta, tinha luas, a Terra não era tão diferente assim. Nesse caso, não seria mais razoável adotar o arranjo proposto pelo polonês Copérnico em 1543, onde o Sol era o centro do cosmo e a Terra só um planeta em seu redor? Defender o cosmo de Copérnico tornou-se a cruzada de Galileu. Ele foi contra tudo e todos, principalmente a igreja. Essa história já foi contada muitas vezes. Galileu criticou os teólogos cristãos, argumentando que a Bíblia não ensina como o céu vai, mas como vamos ao céu. Infelizmente, o que Galileu tinha de gênio lhe faltava em diplomacia. Insistindo, acabou sendo condenado a abjurar a doutrina copernicana e a passar o resto de seus dias em prisão domiciliar. Sua história mostra o quanto a coragem intelectual de alguns muda o destino de muitos. E, de forma mais concreta, como a história da civilização depende da evolução dos instrumentos. A cada vez que um novo instrumento nos permite ver mais longe, ou nos abre novas janelas para mundos que antes eram invisíveis, aprendemos mais sobre a natureza e sobre nós mesmos. Johannes Kepler nos mostrou que não devemos impor nossos preconceitos no mundo. Lutou contra si mesmo para tirar o círculo dos céus. Se o fez, foi por acreditar na precisão dos dados e das observações acima de sua expectativa de uma perfeição estética. Como conto em "A Harmonia do Mundo", ao atribuir causas aos movimentos celestes, Kepler rompe com o obscurantismo do passado, inaugurando a nova ciência dos céus. A visão que temos hoje do cosmo e de nós mesmos se deve, em grande parte, à visão desses dois homens que, 400 anos atrás, tiveram a coragem de acreditar nas suas ideias.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
Nenhum comentário:
Postar um comentário